domingo, setembro 10, 2006

Vanessa A. S. Sequeira: O Acre, o crime e uma paixão

Carlos Valério Gomes
Estudante de doutorado em Geografia/Universidade da Flórida
10/09/06


O Acre:
O estado do Acre, no sudeste da Amazônia, foi há algumas décadas palco de uma grande luta liderada pelo seringueiro Chico Mendes, assassinado em dezembro de 1988, contra a destruição da região. É um estado símbolo da luta contra a destruição da Amazônia e se tornou internacionalmente conhecido exatamente por causa de um assassinato. O Acre mudou muito desde então - para melhor com certeza. Talvez seja o único estado de expansão de fronteira econômica na Amazônia brasileira que conseguiu acabar com a violência fundiária, ainda muito frequente em outros estados como Pará e Rondônia, onde o avanço da pressão humana sobre a floresta tem até hoje significado o assassinato de lideranças comunitárias, lideres ambientais, religiosos, e outros defensores dos direitos humano e ambiental. O Acre tem um governo que se intitula “Governo da Floresta”, no poder há oito anos e é liderado por um governador visionário que era assessor do lider seringueiro Chico Mendes; seu indice de aceitação publica é de 83%, o maior do pais de acordo com pesquisa divulgada esta semana pelo Ibope (principal agência de pesquisa de opinião publica do Brasil). O assassinato de Vanessa não teve conotações de ativismo ambiental, nem está ligado ao seu objeto de estudo profissional. Será que temos que nos conformar com o que parece ter sido uma tripla e absurda fatalidade: lugar errado, hora errada e encontrar a pessoa, se é que pode-se dizer isto, errada? O fato é que Vanessa morreu por ser mulher: uma mulher do mundo – mas estava sozinha e vulnerável no momento do encontro trágico. Como menciou a sua amiga alemã Christiane Ehringhaus, que fez seus estudos de mestrado e doutorado com populacões extrativistas no Acre, “é difficil acreditar que neste Acre que todos nos trabalhamos com bastante tranquilidade durante todos estes anos possa acontecer uma coisa destas!!”

O Acre tem feito a sua parte, e o atual governo acabou com uma quadrilha criminosa liderada por um comandante da polícia militar local que amedrontava a todos: juízes, deputados, jornalistas, ativistas de direitos humanos e qualquer cidadão comum. O algoz de Vanessa já havia cometido crime similar e foi encontrado rapidamente. Todos os procedimentos legais foram tomados com certa agilidade pela Secretaria de Segurança do Estado, de acordo com a imprensa local - o empenho das autoridades locais está claro e o criminoso foi preso em algumas horas. Mas sabemos também que qualquer delegado do interior do Acre conhece quem é ladrão de galinhas e quem já cometeu algum delito mais grave como um estrupo ou assassinato. O problema está em deixar pessoas com tais históricos de crime sexual sem um acompanhamento policial mais próximo. O problema está nas mudanças tão necessárias que precisam ser feitas no nosso país, mudando o código penal e a legistação criminal que ainda permitem que pessoas assim continuem em liberdade total. Sem querer fazer comparações, aqui na cidade de Gainesville (Flórida), onde estou estudando, se eu quiser saber quem já cometeu algum tipo de delito sexual no bairro onde eu moro, basta eu entrar na webpage da polícia local e tudo está lá: nome, endereço, o crime cometido, a foto. Com isto, pais, mães e filhos ficam, no minimo, mais atentos e menos vulneráveis. No Brasil, liderdade condicional significa desaparecer para onde quiser até cometer outro delito grave como no caso com Vanessa. Três dias após o assassinato de Vanessa, um outro presidiário em condicional acusado de estrupo foi assassinado com 25 facadas em Brasiléia, município do Acre na fronteira com a Bolivia. A polícia não tem pistas do assassino, mas trabalha com a hipótese de vingança. Teria sido a familia de mais uma vitima de estrupo que deixou de acreditar na justiça, e resolveu agir com seus próprios métodos? O crime rendeu uma nota de quatorze linhas em apenas um dos vários jornais local. Não esqueçamos o caso recente em São Paulo onde vários criminosos deixaram a prisão no dia dos “pais” e no dia seguinte provocaram uma verdadeira guerra urbana promovida pelo grupo criminoso PCC, matando dezenas de cidadãos inocentes. Quando o Brasil terá leis mais rígidas?

A notícia:
No final da tarde de segunda feira (04/09) quando tudo parecia muito silencioso, eu o Jornalista Altino Machado e a Dra. Mary Allegretti começamos a conversar via Skype sobre o trágico fato. Na manhã seguinte as comemorações do dia da Amazônia estariam acontecendo. Mary Allegretti, que tem uma vida dedicada a comunidades amazônicas e que já sofreu diversas ameaças no Acre quando ela e outros poucos defendiam a causa de Chico Mendes, nos falava: “Eu acho que nós temos que fazer várias coisas: organizar um dossiê sobre a Vanessa e seu trabalho; divulgar quem ela era; protestar, protestar e protestar. Não podemos nos calar diante de um crime bárbaro como esse. É a única maneira: reagir, se indignar, batalhar para que seja feita justiça imediatamente”. O Blog “Rede Reservas Extrativistas” foi o espaço que encontrei para tentar protestar, especialmente tentando mostrar o lado da vida profissional e pessoal da Vanessa, pelo menos para os amigos que temos em comum. Este blog não tem e nem terá a intenção de ser fonte de notícia jornalistica: é um espaço de discusão para pesquisadores e profissionais interessados no tema “Reservas Extrativistas” - Vanessa era uma dessas profissionais e assim era membro da “Rede de Pesquisadores em Reservas Extrativistas”. Foram mais de três mil visitas no blog no dia que se comemorava o “dia da Amazônia” (05/09). O Blog do Altino que é uma referência de notícia regional, recebeu mais de seis mil visitas únicas neste dia, um recorde para ele - mas ele nota “poderia até tentar comemorar o modesto recorde, mas seria impossível me sentir feliz diante de tanta violência contra a vida.” Como ele me falou: “tentamos fazer a nossa parte” - Altino fez com muito profissionalismo e sensibilidade. É a fonte mais completa de informações sobre o trágico acontecimento com Vanessa. Mas o vácuo, por conhecer Vanessa e termos vários amigos em comum que sei que como eu estão muitos tristes, é muito grande. As notícias sobre Vanessa correram as páginas dos principais jornais do Brasil e Portugal. Mas tudo ou quase tudo está voltado para o trágico assassinato, pouco, muito pouco ainda, sobre a sua tragetória como pesquisadora, seu jeito de ser, suas amizades, seu trabalho e seus ideais. Neste artigo quero falar da um pouco mais da Vanessa como pessoa, pesquisadora, e profissional comprometida com seus ideais e seu trabalho com comunidades rurais na Amazônia. Ainda tem muito a ser dito sobre ela, mas ainda é hora de silêncio para seus amigos e familiares.

Mas o crime está de fato resolvido?
De acordo com as autoridades do Acre o crime de Vanessa esta práticamente resolvido, faltando apenas a confirmação do teste de DNA, para o caso da principal testemunha, a esposa do assassino, mudar seu depoimento sobre os fatos. Ao ser questionado por sua esposa, quando ainda estava se limpando na cacimba (poço de captação de água) das manchas de sangue, o assassino declarou “ela não é pesquisadora coisa nenhuma, é da Policia Federal,” de acordo com as informações divulgada na imprensa local.

Há dois meses atrás Vanessa foi denunciada por “biopirataria” por um pescador ilegal em uma comunidade próxima a esta onde foi assassinada. A Polícia Federal e o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente-IBAMA de imediato foram as comunidades onde Vanessa estava trabalhando e conversaram com os residentes constatando que tudo não passava de uma denúncia infundada. Ao saber dos fatos, já em Rio Branco, Vanessa foi a delegacia da Polícia Federal e esclareceu qual o seu trabalho com as comunidades, apresentando as devidas autorizações legais junto aos orgãos governamentais autorizando sua pesquisa.

Quem trabalha com comunidades rurais na Amazônia sabe como é que as notícias correm rápidamente nas comunidades; os últimos a saberem sempre tem uma visão bem deturpada dos fatos. Vanessa era a primeira pesquisadora a desenvolver pesquisa na comunidade e para alguém praticando alguma atividade ilegal, uma pessoa de fora é sempre uma “ameaça”. O assassino de Vanessa até agora não confessou o crime, e de fato novos detalhes podem aparecer se ele resolver falar. Indagações nesta caso, ainda são bem pertinentes. Será que a denúncia sem sucesso contra Vanessa havia despertado algum sentimento de vingança para estes que estão desenvolvendo alguma atividade ilegal na comunidade? Será que Vanessa foi vitima de um crime previamente tramado? Se sim, será que o assassino estava de fato sozinho? Será que seu passado de criminoso despertou sua intenção de assassiná-la pensando que ela era de fato uma policial? E a Policia Federal e o IBAMA, o que fizeram ao constatar que a denuncia era infundada? Verificaram o perfil do denunciante? Isto poderia ter evitado a morte de Vanessa? Não sabemos nada disso, nem a polícia tem investigado tais possibilidades, até onde a imprensa local tem informado. Mas no minimo devemos questionar...


Uma paixão:
Vanessa como profissional, especialista em produtos florestais não madeireiro, era apaixonada por populações extrativistas e uma das árvores mais simbólicas da Amazônia. Uma espécie que continua sendo destruida na região para implantação de pastagens, mas que ainda garante a sobrevivência de milhares de comunidades tradicionais: a castanheira. Vanessa trabalhou vários anos no Peru com manejo de castanhais pela organização não governamental “A Associação para a Conservação da Bacia Amazônica”. Nos últimos três anos Vanessa estava cursando doutorado. Sua Pesquisa era entitulada “Custo e Benenfício das Atividades de Geração de Renda e Conservação Florestal na Amazônia Brasileira: O Caso de um Projeto de Assentamento Florestal no Acre.” Estava avaliando as fontes de geração de renda familiar baseada nas atividades extrativistas, como a coleta de castanha e a produção agropastoril, que tem significado a destruição de diversos castanhais na Amazônia. Na foto ao lado, na comunidade onde estava trabalhando, Vanessa esta de frente para uma dessas castanheiras, morrendo solitária no meio de um campo de pastagem. Uma imagem comum nas margens de qualquer rodovia do Acre e em outras regiões da Amazônia.

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