Reservas extrativistas no Cerrado, para quê?
Verônica Theulen
Veja no site .: O Eco :.
29.06.2006
Os meses passam e as ações governamentais vão se tornando cada vez mais atrapalhadas. De repente, o final do primeiro governo Lula e as eleições despontam tão desanimadas quanto a campanha da seleção brasileira nos primeiros jogos da Copa. É certo, com a seleção sempre sobra uma esperança. Já com o governo, impressiona a falta de controle da gestão e das ações. É impressionante e desalentadora a rapidez como os fatos históricos e técnicos, mesmo do passado recente, desaparecem. Tudo tem sido esquecido ou maquiado para parecer da forma que o comando quer, como era usual na antiga União Soviética com as fotos antigas de reuniões do Partido Comunista das quais eram “desaparecidos” os desafetos recém defenestrados. No caso do meio ambiente no Brasil, tudo é novo, tudo é inédito e desaparece com a história e o acervo construídos. É como se o meio ambiente e a conservação da natureza no país tivessem sido descobertos faz apenas quatro anos.
Mas, de tudo que existe sobre conservação da natureza no país, é inegável a base passada. Pessoalmente, sinto-me gratificada e orgulhosa com os resultados que vejo quando acesso antigos documentos técnicos produzidos pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF). Ali encontro filosofia, doutrina, conceitos, técnica, planos efetivos. Sou consciente de que nem tudo era perfeito – porque isso é evidente – mas, dadas as condições de trabalho daquela época, os resultados foram muito mais expressivos. Lamentavelmente, como se reza na igreja, o antigo IBDF está “morto, foi sepultado...e ressucitou ao terceiro dia” como Ibama e “está sentado a direita do deus pai”, o MMA, “donde há de vir para julgar os vivos e os mortos”. Quem sabe, rezando as coisas melhorem. Pura ironia! Esquecer os conceitos, ou pior, permitir que sejam interpretados de outra forma, à conveniência do poder, para justificar suas ações, é o pior que podemos permitir.
Ideal para a Amazônia
Na confusão de toda história esquecida, ou varrida para trás da porta, poderia discorrer sobre uma série de assuntos, mas prefiro, hoje, tratar apenas das reservas extrativistas, um conceito concebido na e para a Amazônia ainda no final da década de 80. Uma idéia para resolver um problema social, apenas parcialmente associado a questões ambientais e conservacionistas. Uma “espécie” de “reforma agrária” para a Amazônia, ou melhor, especialmente orientada para atender a seringueiros e coletores de castanha, sem propriedade de terra e cujas necessidades territoriais para exercício de suas atividades de subsistência e renda eram (e são) incompatíveis com os módulos rurais estabelecidos pelo Incra.
Naquela época, como ainda hoje, as necessidades desses grupos sociais já se confrontavam com a acelerada ocupação amazônica. No governo, a questão girava em como assegurar milhares, milhões de hectares de terras públicas a tais grupos sociais, sem estabelecer titulação que configurasse o estabelecimento de uma nova classe de latifundiários. A solução encontrada, inicialmente pelo Incra, foram os assentamentos extrativistas; logo depois, pelo Ibama, reservas extrativistas. Em 1992 – ano da segunda Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e do encaminhamento do projeto de lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc) ao Congresso Nacional – foram criadas várias reservas extrativistas ainda sob tênue arcabouço legal. Neste caso, para comunidades de “quebradoras de coco de babaçu” do Maranhão e do Tocantins. Um conceito desenhado para solucionar problemas sociais e não de conservação da natureza, fato que não pode ser esquecido, não pode ser deixado de lado e nem no passado, porque tem limitadíssimas possibilidades de lograr resultados conservacionistas.
Mais de 15 anos se passaram e o assunto é mais atual do que nunca, mas sempre sem tocar no passado e nas origens. De um lado, pesquisas apontam para a evidente inviabilidade ecológica dessas áreas no médio e longo prazo (às vezes, até mesmo no curto prazo), sem de fato agregar-se efetivo desenvolvimento e benefício sócio-econômico às populações envolvidas nos projetos. Concebidas para resolver problemas sociais na Amazônia, o conceito se assentava pública e oficialmente em três pilares de sustentação principais: grandes extensões, população humana usuária rarefeita, e baixa capacidade tecnológica e econômica para gerar impacto. Ações humanas pequenas, e um grau de tecnologia primitivo. Na verdade, sempre um quarto pilar: a crença mítica na positiva integração dessas populações à natureza – idéia que não resiste a resultados das mais elementares pesquisas científicas. Em outras palavras, o sustentáculo do conceito é apenas de ordem político-ideológica e não técnico-científica.
Ainda que fosse possível aceitar a proposta do conceito – e tem sido – não dá para deixar de lado o fato de que, à medida que qualquer um desses três pilares é alterado, a lógica possível (tênue) é quebrada e se interrompe o hipotético ciclo do baixo impacto e da sustentabilidade. Aí está a vulnerabilidade da proposta. E isso acontece mesmo nas grandes áreas da Amazônia, com a questão de terras relativamente resolvidas. Emblemático e paradoxal é o caso da Reserva Extrativista Chico Mendes, a jóia da coroa do conceito, por homenagear o seringueiro mártir da causa extrativista. Ela vem sendo absurdamente desmatada por seus ocupantes que se transformam de extrativistas em pecuaristas extensivos, tudo feito em áreas públicas. Mas há mais casos de grandes extensões sob essa denominação onde as pessoas já não querem mais ser extrativistas, ou onde a questão de sustentabilidade (ou falta de) inviabiliza o negócio, que já não é viável ambientalmente.
Insanidade para o Cerrado
Mas o que é passado e vem sendo esquecido de propósito é sistematicamente desconsiderado, para que, não sendo discutido, não seja notado. É a velha estratégia do “distraídos venceremos”. E daí nasce, sem correlação com a terra, sua posse e seu usufruto, as reservas extrativistas marinhas. E como se não bastassem às reservas extrativistas marinhas, de duvidosos resultados à conservação e às populações envolvidas, nos trazem agora, como solução contra a rápida degradação do Cerrado, as reservas extrativistas neste bioma. Deve ser para reduzir o ritmo da degradação, apenas, já que não será para sua conservação. Essa é a grande novidade para Minas Gerais, Tocantins, Goiás, e por aí afora. Com as ResEx, como são conhecidas nos escaninhos da burocracia oficial, os problemas do Cerrado acabaram. A chave de ouro foi encontrada. Soluções inéditas e rápidas são apontadas e defendidas por (muita) gente importante, e não se fala em outra coisa! Agora é a vez do extrativismo.
Inacreditável, que falta de seriedade e competência! Reserva extrativista faz parte do sistema nacional de unidades de conservação, mas não pode ser aplicada em todos os lugares. É uma tentativa que não logrou louros até hoje, nem mesmo na Amazônia. Implantá-las em outras regiões é como tentar solucionar a questão de conservação dos campos sulinos implantando florestas nacionais, que tem como critério de existência ter florestas para serem manejadas. Ou então estabelecê-las em áreas de uma ou duas centenas de hectares.
É uma situação insana, para se dizer o mínimo. Onde temos as últimas áreas que precisam ser conservadas no Cerrado e precisamos garantir a proteção efetiva, vão se gastar recursos públicos para adquirir terras a fim de favorecer algumas poucas pessoas em detrimento do benefício do patrimônio natural da nação inteira. No momento em que precisamos ser estratégicos ao máximo para garantir os últimos “pedaços” de Cerrado, remanescente de uma história de conquistas brutais do homem sobre a natureza para viabilizar a conservação minimamente aceitável deste rico e ameaçado bioma aparecem essas propostas alternativas “sustentáveis”. O pior é que, quando questionados, os especialistas salvadores da pátria (ou populistas simplistas), sempre afirmam: “vocês são contra reservas extrativistas porque querem monocultura de soja”, ou então “é comprovado que existe maior conservação nas reservas extrativistas do que nas áreas ilegais de garimpo”. Respostas tão inteligentes quanto dizer que a economia do Brasil é muito mais estável do que a do Haiti e que socialmente estamos muito melhor do que Uganda – incontestáveis.
O que eu queria mesmo hoje é gritar “socorro”! Chega de bobagens. Precisamos ser sérios. O Cerrado precisa de ações governamentais fortes e rápidas que garantam a proteção efetiva dessas áreas, que mantenham a integridade dos ecossistemas ali encontrados. Como brasileira, sinto-me muito a vontade para fazer esta reivindicação. Afinal de contas, para adquirir tais áreas às reservas extrativistas gastaremos recursos públicos que poderiam ser mais bem empregados para resolver a questão fundiária de parques ou reservas biológicas já criados, ou de novas áreas que precisam, emergencialmente, ser protegidas com mais garantias de conservação. E mais ainda: mesmo se tivéssemos um monte de recursos, que o Ministério do Meio Ambiente não fosse a sexta pasta com menor recurso previsto para 2006 entre os 23 ministérios do governo Lula, e que existisse toda uma política consistente de conservação para o Cerrado, eu seria contrária a essa idéia. Ela não se sustenta na prática, quer no tempo como no espaço (territorial).
Este é o primeiro espaço para divulgação de informações da "Rede de Pesquisadores em Reservas Extrativistas". Esta é uma iniciativa de pesquisadores, porém aberta a outros profissionais. Temos como objetivos (i) criar um espaço para divulgação e troca de informações sobre Reservas Extrativistas, (ii) desenvolver pesquisas colaborativas para subsidiar políticas públicas para Reservas Extrativistas e o diálogo com o movimento social. Envie-nos um e-mail para seu registro na rede.
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