domingo, julho 02, 2006

COMENTÁRIOS AO ROTEIRO DE PLANO DE MANEJO

Roteiro Metodológico para Elaboração do Plano de Manejo das Reservas Extrativistas e de Desenvolvimento Sustentável Federais

Comentários de Mary Allegretti
Antropóloga


O documento produzido pelo DISAM/IBAMA é bastante abrangente e completo no que se refere a contemplar todas as áreas de conhecimento requeridas para se alcançar um diagnóstico exaustivo das unidades de conservação. A única e principal ressalva a se fazer é que nesse roteiro as comunidades locais são acessórias, ou seja, a existência e a função que desempenham nessa modalidade de UC em muito pouco influenciou os objetivos do PM ou a metodologia escolhida para realizá-lo.

Em síntese, penso que existe um problema metodológico que expressa uma questão conceitual a respeito da relação Estado-comunidades em unidades de conservação de uso sustentável.

1. Participação: como as comunidades participam da elaboração do Plano de Manejo.

A participação das comunidades residentes na elaboração do Plano de Manejo está assegurada pela lei mas não pela metodologia proposta pela DISAM - Diretoria de Desenvolvimento Socioambiental do Ibama. De acordo com a metodologia elas devem ser ouvidas e participar uma vez que serão "diretamente afetadas pelas normas e diretrizes do referido documento". Parte-se, portanto, do conceito de que o Plano é externo a elas, irá restringir as ações realizadas e poderá terá impacto derivado do poder de administração do IBAMA.

Assim, assegura-se a participação de forma normativa, ou seja, formal. Elas serão convidadas às reuniões, serão ouvidas nas entrevistas, provavelmente serão guias dos pesquisadores, mas não são co-responsáveis pela elaboração do Plano nem são pesquisadores e/ou consultores com status equivalente ao dos técnicos que irão realizar os levantamentos.

A metodologia é formal, segue os preceitos participativos tradicionais aplicáveis a comunidades rurais concebidas como atrasadas e sem protagonismo. A necessidade de assegurar participação, a todo momento no texto, é a evidência de que, na prática participação é igual a consulta e não a ação.

Uma metodologia verdadeiramente participativa é diferente: requer a contratação, em pé de igualdade, de "pesquisadores locais" - aquelas pessoas designadas pela comunidade para realizar o trabalho juntamente com os pesquisadores acadêmicos e escolhidas de acordo com critérios previamente definidos: conhecimento da comunidade, da área, dos recursos, representatividade, liderança etc.

Uma metodologia verdadeiramente participativa requer um planejamento que antecipe o objetivo principal de um plano de manejo em reserva extrativista ou reserva de desenvolvimento sustentável, que é o pleno conhecimento da comunidade a respeito das riquezas e potencialidade de sua área e das oportunidades e limites de uso desse patrimônio. O plano de manejo precisa ser um instrumento de trabalho para os moradores e não um documento acadêmico para conservacionistas ou funcionários públicos. Assim o planejamento deve ter esse objetivo em mente: como combinar o conhecimento empírico com o científico, como debater e aprovar pela comunidade, como publicar de forma que cada morador veja sua contribuição no produto final.

2. Conteúdo: qual o valor teórico e prático das informações levantadas.

O roteiro do PM é o de uma tese acadêmica e acho que tem um enorme valor acadêmico se todas as áreas puderem contar com as informações referidas e estudos comparativos puderem ser realizados. Mas tem pouca ou nula função para os gestores da área, que são as comunidades locais.

Isso não quer dizer que os dados não devam ser levantados. Quer dizer que é preciso hierarquizar as informações conforme a relevância delas para os objetivos finais do PM.

Pode-se considerar que, idealmente, todas as UCs devem alcançar, ao final de uma década de pesquisas, todas as informações requeridas no documento. Mas que, para que a comunidade possa administrar de forma ambientalmente responsável e com retorno econômico o patrimônio sob sua concessão, algumas informações são mais essenciais do que outras. E essas devem ser pesquisadas prioritariamente.

De pouco vai adiantar para a gestão das UCs a compilação da lista enorme de dados que os pesquisadores deverão levantar. E considerando que a exploração dos recursos depende do PM, isso significa que as comunidades vão continuar na ilegalidade por muito tempo até que todo esse processo seja desencadeado.

Só para citar um exemplo no tópico de gestão da unidade:

"Se não existir o Plano de Utilização, estabelecer com as comunidades as Regras de Convivência, de maneira a definir as competências e responsabilidades entre os moradores e o órgão gestor, no sentido de assegurar a utilização racional e sustentável dos recursos naturais."
Atender a este tópico poderia ser o objetivo primeiro do PM: criar um instrumento de transição entre o Plano de Utilização e o Plano de Manejo; ou criar as Regras de Convivência para aqueles que não têm um Plano de Utilização. Com base nessa atividade, realizada de forma realmente participativa, seriam hierarquizadas as demais informações necessárias, até se chegar a um entendimento global da área, seu entorno, sua situação atual e cenários futuros.

Outro exemplo importante é o que define a sustentabilidade ambiental e socioeconômica da Unidade e que está incluído nos capítulos dos Cenários e dos Programas. Ambos têm como referência as demandas das comunidades. Mas não existe um espaço destinado ao levantamento e à identificação das demandas e dos cenários desenhados pelas próprias comunidades. Ou seja, o diagnóstico não necessariamente levará a comunidade a discutir onde está e onde quer chegar se não houver uma metodologia especificamente definida para este fim.

Por último, realizar a atividade de zoneamento da unidade poderia ser um meio de organizar todas as informações demandadas e de mobilizar a comunidade para pensar a área em conjunto, trocar informações com pesquisadores e organizar um projeto de futuro. Mas da forma como está, o zoneamento é mais um item da longa lista de dados a serem compilados em cada unidade.

3. Inovação: comunidades pesquisadoras versus Estado.

Da forma como está definida a metodologia, o Plano de Manejo de cada UC demandará uma equipe multidisciplinar de cerca de 5 pessoas diretamente envolvidas, levará cerca de um ano para ser realizado e deverá ter um custo unitário bastante elevado. Ao final, se não forem realizadas correções de metodologia e objetivos, o produto será um enorme documento que ficará mofando nas prateleiras do IBAMA e não terá nenhuma utilidade prática para as comunidades.

Isso não quer dizer que não terá informações relevantes para a Amazônia. Poderá se transformar, porém, em um instrumento de poder do Ibama sobre as comunidades que passará a fiscalizar as áreas a partir do que estiver ali definido.

O problema é a falta de inovação e o papel passivo – de consulta – delegado às comunidades. Não faz juz à história das reservas extrativistas nem é coerente com o processo de criação de uma reserva extrativista que requer mobilização, organização e ativa defesa de seus interesses. Ao se inserir nas malhas do Estado, toda essa riqueza vai se burocratizar e virar documento de tecnocrata e de acadêmico e não instrumento de mobilização para a mudança da realidade.

A institucionalização das reservas extrativistas é um processo delicado e que requer uma revisão do papel do Estado nas unidades de conservação. Entendo as unidades de uso sustentável como resultado de um pacto entre Estado e comunidades em torno da gestão dos territórios e esse pacto requer regras mutuas de convivência e de uso dos recursos e ambos devem criá-las em conjunto sob pena de se perpetuar a idéia de comunidades passivas ou dependentes e governos autoritários ou populistas.

Imagino o processo de elaboração de um Plano de Manejo como uma oportunidade única de mobilização de energias de conhecimento e prática, de reflexão e ação, de envolvimento e crítica, de história e futuro. É também uma oportunidade de criar parcerias sólidas, de envolver centros locais de pesquisa, de revolucionar métodos, de criar novas oportunidades de aprendizado para os moradores das reservas, de contribuir para o auto-conhecimento da comunidade e de seus recursos e a consolidação dos laços que vão permitir um projeto de futuro. E de definir um outro tópico fundamental não previsto na metodologia apresentada: indicadores de monitoramento, instrumento que pode ser muito útil para acompanhar a execução dos programas e objetivos definidos pelas comunidades e formalizados no Plano.

Não estou falando teoricamente. Apliquei recentemente essa metodologia na elaboração do Plano de Desenvolvimento Sustentável da RDS do Rio Iratapuru no Amapá, resultado de um contrato da Natura com a AMAPAZ/DS, e o resultado final foi excelente.

Nenhum comentário: