segunda-feira, maio 01, 2006

DE VOLTA À RESTAURAÇÃO

Mariana Ciavatta Pantoja

Caros leitores, quero aqui narrar uma viagem que fiz, em janeiro passado ao coração da Reserva Extrativista do Alto Juruá. Voltei a Restauração do rio Tejo, a aonde não ia há cinco anos. Foi lá que ocorreram as mais importantes manifestações e eventos que mobilizaram os seringueiros para reivindicar sua Reserva Extrativista no final dos anos de 1980. As principais lideranças de todo aquele movimento saíram do alto rio Tejo e afluentes. A Restauração era o principal seringal da região, e o Tejo o “rio da borracha”. Foi lá ainda que me iniciei como antropóloga, e onde realizei a pesquisa que deu origem a minha tese de doutorado, depois livro sobre a família de seu Milton Gomes da Conceição (Os Milton. Cem anos de história nos seringais. Recife, Massangana, 2004). Tudo isso não faz tanto tempo assim, cerca de 15 anos. Mas o tempo passa, como ficou claro para mim durante as duas semanas que passei no rio Tejo.

O projeto de pesquisa

Desde 1994, participo de um grupo que, liderado pelo prof. Mauro Almeida, realiza um trabalho de capacitação de moradores da Reserva Extrativista do Alto Juruá em atividades de pesquisa e monitoramento socioambiental. Desenvolvendo métodos e técnicas para uso local e estimulando o diálogo entre os saberes locais e os nossos, científicos, entre os anos de 1999 e 2002 a equipe de “monitores socioambientais” da Reserva chegou a ter 50 moradores. Três publicações conjuntas já resultaram desse esforço, uma delas um livro de autoria de Raimundo Farias Ramos, o Caboré, com escritos diversos deste verdadeiro intelectual da floresta (Histórias de um Matuto da Floresta, Campinas, UNICAMP, 2004). Três outras estão no prelo. Nos últimos três anos, sem financiamento, o “projeto de pesquisa” esteve ausente da área.

Com a proposta da Universidade da Floresta, recursos do PPBIO/MCT foram canalizados para consolidar uma unidade que deverá ficar conhecida como Instituto da Biodiversidade. Conseguimos, dentro desses recursos, encaixar ações do “projeto de pesquisa”, e em janeiro de 2006 viajamos à Reserva para mobilizar novamente os monitores e conversar sobre esta nova etapa de nosso trabalho conjunto.

Saímos do porto de Cruzeiro do Sul em duas canoas no dia 12 de janeiro: numa delas, íamos Marcus Athaydes, biólogo recém-contratado pela UFAC para o novo campus de Cruzeiro do Sul, eu (antropóloga e também recém-contratada pela UFAC) e Edir França, nosso piloto já de longa data. Na outra, dois dos principais monitores da Reserva, Caboré e Antonio Barbosa de Melo, o Roxo (irmão do legendário Chico Ginú), Augusto Postigo e Roberto Rezende, ambos da UNICAMP. Dia 14 estávamos em Marechal Thaumaturgo. Como está mudada a sede do município! Há agora prédios de até três andares, comércios relativamente grandes, ruas calçadas com tijolos, praças, iluminação elétrica durante todo o dia. Não vi, mas ouvi falar de motocicletas. Olhando da escola, um dos pontos mais altos da hoje uma pequena cidade, é possível ver novas ruas e casas que vão surgindo e expandindo a área urbana. Fiquei me perguntando sobre o que está sendo feito com o lixo e se há algum sistema de esgoto...

Chegamos em meio ao Novenário de São Sebastião. O movimento estava especialmente intenso, e resolvemos partir logo e dormir na Reserva Extrativista. À noite já estávamos banhados e acomodados na casa do inventivo agricultor Antonio Caxixa, na colocação Cinco Voltas, rio Tejo, ele e sua esposa Nalva monitores. A colocação do casal é um exemplo de agrobiodiversidade, não só nos roçados mas também pelas fruteiras que tem em volta da casa. No dia seguinte, seguimos viagem até o Maranguape Velho, na casa de Luciene, uma das monitoras mais antigas da Reserva, e finalmente no dia seguinte chegamos na casa de seu Milton, já na Restauração.

Em todo o percurso do rio Tejo chamou-me atenção duas coisas: as casas, agora de madeira serrada e cobertas de alumínio, e pintadas. Bonita visão a das casas coloridas nas margens do rio. São resultado do acesso dos moradores ao crédito de auxílio-moradia para os beneficiários da reforma agrária, do INCRA. Pena que a solução do telhado seja tão pouco adaptada às condições locais, pois as casas tendem a ficar quentes quando o sol fica mais forte, e a conversa se torna quase impossível quando chove forte sobre o alumínio. Alguns moradores fazem uma cozinha coberta de palha, para onde é possível fugir na hora mais quente do dia.

Mas também chamava atenção os desmatamentos nas margens do Tejo. À medida que íamos subindo o rio fui me dando conta que se tornara um padrão a presença de campos (pastos) em volta das casas, o que aponta para um indiscutível aumento da atividade pecuária na Reserva. Passamos por lugares que, tanto eu quanto Edir, não reconhecíamos tal a alteração da paisagem. Como dizem os moradores, as margens do rio estão sendo “descascadas”.

Na vila Restauração

No dia 16, realizamos uma reunião com um grupo de quase 20 monitores agora residentes na vila Restauração. Havia uma satisfação geral de estarmos todos juntos ali – afinal, diziam, o “projeto de pesquisa” está voltando! Durante toda a viagem, não foram poucos os moradores que expressaram sua satisfação em nos ver ali de volta. Ao projeto de pesquisa associavam um tempo em que havia mais informação, mesmo uma espécie de “fiscalização”, pois sempre se estava investigando e anotando o que estava acontecendo. A Reserva estava, diziam, mais respeitada interna e externamente. A esse período também associavam um tempo em que havia “lei” na Reserva.

Foi com muita alegria e emoção que encontrávamos ali os nossos amigos pesquisadores, pensadores e cientistas da floresta, com um jeito todo próprio de ser e expressar seus pensamentos e idéias. Uma equipe orgulhosa do seu trabalho de monitoramento, consciente do quanto fazer pesquisa os fizera crescer, “se desenvolver”, e da utilidade de seus esforços para um melhor gerenciamento da Reserva. Vários deles, por outro lado, diziam-se preocupados com o que estavam vendo: muito desmatamento e uma falta de consciência dos moradores sobre o que era, afinal, uma Reserva Extrativista.

Até pouco tempo atrás, boa parte dos monitores com quem nos encontramos na vila Restauração residia em colocações mais centrais e distantes. A crise da borracha, as novas alternativas agropecuárias, os investimentos que a Prefeitura vem realizando na vila, gerando empregos e também serviços públicos, e, como a gota d’água, a implantação pelo governo estadual do ensino de segundo grau na vila Restauração desencadearam a crescente migração das famílias para aquela localidade e suas proximidades.

A vila Restauração conta hoje com mais de 50 casas (totalizando, imagino, algo em torno de 250 moradores), duas escolas, quatro igrejas (uma católica e três evangélicas), uma padaria, um posto de saúde, uma hospedaria, uma serraria, um campo de futebol (já antigo), alguns botequins e dois pequenos comércios. Há uma rede elétrica que percorre a Vila, embora nem sempre haja combustível para o gerador. Televisões e antenas parabólicas são hoje comuns, vários moradores os têm.

A ocupação de “funcionário”, ou seja, assalariado pelos poderes públicos, garante hoje à diversas famílias uma fonte de renda monetária estável, condição a que todas almejam. Na vila Restauração há hoje professores, auxiliar de enfermeiro, garis, merendeiras, vigias, zeladeiras, entre outras funções remuneradas pelo poder público. Não é difícil, por outro lado, garantir um rendimento monetário temporário, como é o caso das diárias. Há serviços de terçado (para manter os pastos), carregar madeira (para as construções locais), operador de moto-serra e carpinteiro. E há também um mercado ainda em aquecimento para produtos agrícolas e criações domésticas.

As casas da vila concentram-se numa área que inclui a margem do rio (digamos uns 600 metros) avançando para o interior (cerca de 500 metros). Em volta desta área, rumo ao interior da floresta, expandem-se os roçados e capineiras (pastagens cultivadas). Olhando aquela concentração de casas num local que, desde minha última visita, não abrigava mais do que 20 casas, perguntava-me como estariam sendo definidos os direitos de propriedade.

Como cada morador estabelece agora qual a parte que lhe pertence, tanto na vila quanto na mata? Quais são os critérios de demarcação e os mecanismos de legitimação dos direitos? Considerando que todo aquele boom de casas estava certamente acompanhado de um aumento de roçados e de áreas para o gado, me perguntava sobre o impacto ambiental de tudo aquilo e sobre a necessidade de normas para regular aquela nova ocupação do espaço e uso dos recursos naturais.

Ouvimos, por exemplo, relatos sobre confrontos (“questões”) entre moradores veteranos da Restauração, donos de estradas de seringa, e novatos em busca de espaço e recursos para sua instalação no local, como madeira para suas casas e caça para seu alimento. Estradas invadidas para retirada de madeira, ou ameaçadas pela proximidade de roçados, estão entre algumas das novidades negativas. Direitos tradicionais dos seringueiros, amparados pelo Plano de Utilização e pelo cadastramento que fundamenta a Concessão Real de Uso da Reserva, estão sendo confrontados com novas atividades e usos do espaço e recursos. A pressão do aumento de moradores sobre a caça, e caçadas ilegais com cachorro, tem levado muitos moradores, em busca de formar um rancho doméstico “de vantagem”, a ir caçar em matas mais distantes (no Machadinho ou nas que confrontam com o rio Acuriá), a onde permanecem por alguns dias.

Pergunto: não seria necessário um Plano Diretor para a vila Restauração, associado a um Plano de Manejo mais geral, regulando seu crescimento e desenvolvimento? Hoje, na vila, as autoridades constituídas são o sub-prefeito e um vereador, ambos moradores antigos do lugar. Ao prefeito também recorrem os moradores quando querem garantir algum direito, como o de brocar um espaço para erguer sua casa. O poder público municipal parece ser a maior autoridade política hoje na vila Restauração, e as preocupações ambientais, que deveriam nortear o gerenciamento da área, estão ausentes.

O debate na Reserva, ou a Reserva em debate

Mas e o Plano de Utilização da Reserva – que fora criado pelos moradores e sancionado pelo IBAMA – alguém ainda se lembrava dele? Veteranos da criação da Reserva reclamavam que não. Com efeito, muitas das queixas e relatos que chegavam aos nossos ouvidos iam de encontro ao Plano, como a destruição de seringueiras, a extração de óleo de copaíba para venda (sem plano de manejo), caçadas com cachorro no interior da floresta e mesmo o uso de madeira da Reserva para construção de casas na sede do município. Mesmo sendo de um morador, reza o Plano de Utilização que a madeira retirada das matas da Reserva não pode sair de suas fronteiras.

Tudo isso apontava para duas coisas, conforme vários moradores nos explicaram: falta de fiscalização e de trabalho de base. Por um lado, diziam, o IBAMA é hoje uma ausência. Há já bastante tempo não se faz presente de forma mais efetiva na Reserva, e na vila em particular. Quando denúncias chegam a Cruzeiro do Sul, o chefe do CNPT sempre coloca mensagens na rádio para os desobedientes, mas o efeito disto é questionado. Enquanto estávamos lá, novas placas de identificação da Reserva estavam sendo colocadas em todo o seu perímetro. “Muito bonita” observava um morador, “bem pintadinha. Mas a pessoa que não respeita, vai respeitar uma flandres?!” – questionava. Os moradores com quem conversamos querem a presença fiscalizadora do IBAMA na área, querem que o Estado cumpra o seu papel como co-gestor da Reserva, o que, avaliam, não está acontecendo.

Por outro lado, há uma outra ausência que é sentida por muitos moradores da Restauração: a de seus representantes legais. A presença de diretores trazendo esclarecimentos e informações sobre a Reserva Extrativista e suas leis, realizando reuniões e ouvindo as demandas locais, organizando os moradores localmente, enfim, realizando o trabalho de uma associação de trabalhadores, é uma carência real e cujos prejuízos políticos e ambientais são bastante significativos.

Até bem pouco tempo, a ASAREAJ era a única associação atuando na Reserva. A reeleição de sua diretoria em 2005, mesmo que com pouca margem de votos, indica que um perfil de atuação associativa pouco empenhada em coibir práticas ilícitas tem, ao que parece, apoio de parte dos moradores. A ausência do IBAMA é, neste sentido, mais grave ainda. Hoje há novas associações na Reserva surgidas como oposição a ASAREAJ, e o sindicato está voltando aos poucos a se fazer novamente presente. Para muitos moradores esses últimos fatos são uma boa notícia.

Devo dizer ainda que o único artigo do Plano de Utilização que vi citado diversas vezes foi o que dá direito a cada família de utilizar 15 hectares de floresta para a instalação de terreiros, roçados, campos e capoeiras. Este número – 15 hectares – parece estar se transformando num fetiche para justificar, ou denunciar, as derrubadas. Tamanhos de campos são citados e sempre referidos a essa medida, se maior ou menor do que ela. Porém, na época de criação do Plano, este número foi estabelecido para garantir que não mais do que 5% da área das antigas colocações fossem utilizadas por atividades agropecuárias, e isso ao longo de um manejo cíclico. Ou seja, outra lógica estava operando, e não a de que cada família, independentemente de residir ou não numa colocação, teria direito a derrubar 15 hectares. Há uma leitura perversa da lei neste caso, ou a lei teria que ser revista. Mas nesta hipótese a discussão teria que ser sobre o que queremos, afinal, com as Reservas Extrativistas. Talvez seja a hora de retomar, mais de dez anos depois e num outro contexto, esta conversa.

Nesse contexto, é possível observar atitudes como a de seu Amarino Sales, um ex-morador da Reserva e ex-patrão que, auxiliado por um advogado (Ademir Barroso, OAB/AC 2.400), alega que o seringal Maranguape, aberto por seus antepassados, não foi legalmente desapropriado pelo IBAMA e, portanto, estaria passível de venda. É esta a intenção dele e seus familiares, que já estariam em conversas com um empresário local interessado na madeira da área. Por outro lado, outro processo significativo e em curso na Reserva é o surgimento de uma etnia indígena até então julgada desaparecida, os Kontanawa, e uma conseqüente reivindicação de direitos fundiários. Os Kontanawa, compostos pelos membros da família de seu Milton Gomes da Conceição, conforme eu mesma tive a oportunidade de documentar em meu livro citado no início deste Papo, estão em pleno movimento de ressurgimento identitário e de demanda por um território próprio, no interior da Reserva.

E a Reserva Extrativista? – novamente me pergunto. Por tudo o dito, na do Alto Juruá parece que é urgente a retomada da mobilização e informação dos moradores, realizada por dirigentes e lideranças efetivamente comprometidos com a proposta e futuro da Reserva, e não com interesses particulares ou político-partidários. Reuniões comunitárias por toda a Reserva, retomando o Plano de Utilização e a legislação ambiental, inventariando as novas situações e demandas locais, formando mesmo as bases para o futuro Plano de Manejo da área, são ações necessárias e possíveis. O apoio e presença do IBAMA são imprescindíveis. E também do “projeto de pesquisa”, seus pesquisadores e seus monitores, que há mais de 10 anos vêem sistematicamente registrando a trajetória da Reserva Extrativista do Alto Juruá – longa vida para ela!

Um comentário:

Anônimo disse...

bom comeco